Manual do candidato branco às cotas raciais

do pardo inocente ou mal-intencionado

Cassi Jones de Azevedo
9 min readMay 3, 2018
Modestos Brocos — A Redenção de Cam (1895)

Esse é um manual simples, objetivo e direto para os candidatos e candidatas que são brancos e que desejam se candidatar a uma vaga na universidade destinada para negros e indígenas. (por favor, antes de tudo, não se finja de desentendido, seja sincero consigo mesmo. Em um país em que os privilégios brancos são escondidos e camuflados pelo jargão “somos todos miscigenados” é fundamental que as pessoas brancas — não somente pessoas negras — se posicionem para que possamos sanar o problema do racismo e seus derivados)

quem é negro no Brasil?

“Cara pessoa branca”, na medida que a questão aqui é fenotípica, de marca, corpórea etc., uma pessoa negra é aquela que possui ascendência negro-africana e que carrega marcadores no corpo dessa ascendência. Fique calmo, ninguém disse que é fácil distinguir quem é negro no Brasil. Todos nós sabemos disso! Sem contar a população indígena que vive um processo sistemático de genocídio desde a chegada europeia, por aqui chegaram mais de 5 milhões de sequestrados de várias partes de África, os quais foram forçados a tudo, inclusive a assimilação sexual pelo estupro. A África é diversa; as pessoas que existem em África também são diversas (existem, brancos, pretos e até amarelos); e o processo de mistura gerou todo tipo de cromatismo possível. A significação desses aspectos também não são únicos. Contudo, quando pensamos no Brasil, país onde vigorou mais de 300 anos de escravização, temos construído em nosso imaginário coletivo o que é ou poderia ser uma pessoa negra — bem como, uma pessoa branca. Nem é necessário dizer que essa construção imagética é hierarquizante e tem efeitos diretos nas pessoas que carregam os marcadores negro-africanos em seu corpo; algo que vai desde a incapacidade de ser apresentável em alguns tipos de empregos até a probabilidade de ser assassinada por algum policial racista pelas ruas. Note, isso é relacional, e é você, branco, quem herda toda mais-valia racial do sistema. Portanto, você é o lado privilegiado de tudo isso, não seja hipócrita consigo mesma. Cotas pra preto, é pra preto! Fora disso, é fraude!

“… mas eu sou pardo!?”

Não se meta a parda! Essa história de pardo no Brasil é antiga e démodé. Nenhuma identidade ou categoria de identidade é fixa, eu sei muito bem disso (mas não me chame de pós-moderna, por favor!). A própria ideia de pardo no Brasil variou ao longo do tempo e dos contextos regionais brasileiros. Por exemplo, no séc. XIX, em algumas regiões, pardos eram os descendentes de africanos nascidos no Brasil, em alguns casos, fruto do estupro dos senhores. Quanto ao Estado, o próprio IBGE utilizou essa “categoria de identificação” de forma imprecisa e descontínua — num tira-e-põe — durante anos a fio em seus censos, como foram os casos dos de 1872, 1950, 1960, 1980, 1991, 2000 e 2010. O “pardo”, mesmo pro IBGE, é ambíguo! E é justamente por isso que ele foi inserido em determinados censos, pois, fica nessa zona cinza “entre” o branco, o negro, o amarelo e o indígena, ou seja, está em lugar nenhum. O “pardo” é o “etc.” no paraíso racial brasileiro, categoria na qual poderia caber tudo que não é, não foi ou não gostaria de ser inserido em algumas das outras categorias. Mas, pense comigo, o Brasil foi um dos primeiros países das Américas a sequestrar negro-africanos e o último a abolir a escravização de sua constituição (um mero detalhe!), e onde também se assimilou de forma intensa as teorias racialistas mais retrógradas da Europa que afirmavam a superioridade da “raça branca” e a inferioridade de negros, indígenas, bem como, “mestiços” (os degenerados). Considerando que nenhuma identificação é natural, objetiva e neutra, imagine os efeitos disso nas representações e significações dos corpos no Brasil? As diferenças aqui sempre estiveram atreladas a desigualdades e hierarquias - cuja brancos estão no topo da pirâmide enquanto os não-brancos se revezem na base.

… voltemos ao pardo: primeiro, em um contexto como esse, que sempre projetou o branco como superior e o embranquecimento como ascensão e obsessão, o pardo sempre foi uma fuga desses que se revezam na base da pirâmide racial. Uma vez que estes são, indisfarçavelmente, negros, indígenas ou etc. o pardo seria uma zona de fuga rumo a ascensão. Ops, quero dizer, rumo ao branqueamento. Segundo, nos processos de identificação, mesmo do IBGE, eram tidos como pardos as pessoas que racial, etnicamente ou por cor não queriam ou não eram identificadas como negros, indígenas, amarelos e que se representavam ou eram representados o mais próximo possível da categoria branco, mas, que não se encaixavam verdadeiramente nela. Ou seja, no paraíso racial brasileiro, o branco é o “grande” referencial e a base da pirâmide racial deseja ser identificada com/como ele: o pardo era a ponte. Normal.

“… mas eu ainda sou pardo!?”

Confesso, é uma interpretação simplificada, mas, na medida que vivemos em um país onde “a noite todo gato é pardo”, é melhor ser pardo do que ser um gato preto, amarelo ou indígena. O que quero dizer com isso tudo é: na categoria pardo, historicamente, se inseriram pessoas não-brancas (pretos, negros, indígenas, amarelos etc., mas), agora, com o advento dos benefícios das “cotas raciais”, espantosamente, vemos pessoas que (são brancas, mas que) não são negras ou indígenas se metendo a pardas. Enfim, vemos pessoas que se gabaram a vida toda de seus ancestrais europeus, de seus olhos azuis, de seu cabelo escorrido, de seu nariz afilado, de sua pele branca querendo ser preto. Já que é impossível isso, se tornam pardas; os novos pardos!… mas é sempre bom lembrar, mesmo pardos vocês não perdem o privilégio de ser branco. Consegue entender? Nem eu! Só sei que esse “novo pardo”, que na calada da noite e do dia é branco, utiliza-se da ambiguidade da categoria pra acessar vagas nas universidades. Fraude!

“… mas eu ainda sou pardo”

Cara, com todo o respeito: foda-se!

“Minha avó foi pega no laço”, “Meu avô foi escravo!”

você já percebeu que as cotas são para pessoas negras (pretos e pardos) e indígenas? Já notou que essa é uma política que busca interferir literalmente no corpo estudantil, majoritariamente branco? Percebe que essa políticas visam fazer a diferença na universidade, não manter as coisas como estão? Pare de evocar suas avós, avôs, pais e mães negros e negras. By the way, pare de contar essas histórias de terror e subasternização racial, tipo: “minha avó foi pega no laço”, “meu bisavô era escravo”, “tenho o pé na cozinha”etc.. Realmente, as cotas não são pra você. Mas, na medida que você não se encaixa, creio que as universidades terão o prazer de ter sua avó indígena e seu avô negro como estudantes. A final de contas, se “representatividade importante”, tenho certeza que eles representariam muito bem!

livre arbítrio da auto-identificação

Sei que você acredita no livre arbítrio da auto-identificação. Eu também acredito. Assim como a ONU, quando diz, “é inalienável o direito da pessoa de se auto-identificar”. Todo mundo sabe disso! Mas, e se eu disser que sou branco? As portas do banco não iriam, magiamente, mais travar?!

Você pode se identificar como quiser. Mas não se esqueça, você vive em um país onde a supremacia branca nada de braçada. Seus privilégios lhe possibilitam ser o que você quiser: circular onde quiser e não ser seguido nem por seguranças, nem pela polícia; se apropriar da cultura de quem quiser, usar turbante, dread-locks, tocar seu “samba de raiz”, ir no candomblé etc.; se identificar como negro, amarelo, indígena, pardo e seja lá o que for, e isso tudo sem ônus algum. Não tá bom?! Quem dera se a auto-identificação fosse um ato descontextualizado no tempo-espaço e eu, uma pessoa negra, pudesse me identificar como quisesse. Ao contrário, mesmo que eu não queira, sou nessa sociedade racista aprisionada a uma identidade estereotipada que me causa uma série de problemas físicos e psicológicos, independente de eu me identificar como branca, amarela ou qualquer outra cor. As identidades são produções coletivas, sabe?! A sua auto-identificação só tem sentido frente uma coletividade que a reconheça e, consequentemente, a dê sentido. Assim, se a sociedade, a comunidade negra e indígena, ou a própria comissão de verificação das cotas, não te reconhecem, nem mesmo como pardo, por que insistes? Assuma sua brancura, please!

produto do contexto social?

Repito: não importa se você mora em um lugar pobre cheio de gente negra; se você nasceu numa cidade de Minas Gerais onde houve escravidão; não importa se você vai ao samba e sabe tocar pandeiro; não importa se você dança maracatu; se vai às batalhas de rap ou faz aquele slam da hora; não importa se você leu todos os livros que falam de preto, mesmo Malcolm X; não importa se você tem amigos negros; não importa se você sobe o morro pra comprar seu bagulho na mão de jovens negros (que morrem todo dia)… nenhuma dessas coisas te faz negro, ou mesmo pardo!

Quando vale a cegueira da diferença racial…

A diferença racial não é neutra em Terra Brasilis. De mãos dadas à essa diferença está a desigualdade. Para alguns (de fato, pra quem não é branco), o ônus, para brancos, o bônus. Nem é preciso dizer que se você se coloca cego a isso você é conivente com toda a desgraça e miséria que o “paraíso racial” produz. É fácil ser cego, não perceber seus privilégios na cadeia da diferença racial. Mas, como diria Zezé de Camargo & Luciano, “é a sua indiferença que me mata”. Em partes eu até te entendo: já que alguém tem que ser sacrificado para que o “paraíso” exista, que sejam os pretos! Mas também, em partes, eu esperaria um posicionamento mais ético ou lógico seu. Como você pode levar uma vida acumulando a mais-valia do racismo — sendo até racista — e se passar por uma pessoa negra? É como se você fosse o patrão e o empregado, o Batman e o Coringa, a Xuxa e o Pelé, Malcolm e King, água e pedra, tudo ao mesmo tempo. Só não digo que isso é impossível porque vivo no Brasil. Mas, mais que cegueira, isso é esquizofrenia da braba. Portanto, seja verdadeiro consigo mesmo. Não usurpe a vaga de quem realmente tem o direito. Cota pra preto, é pra preto!

Ética da mestiçagem; supremacia branca

Sei que você ainda deve estar dizendo: “Sou brasileiro, sou mestiço”, “não existe raça pura no brasil” etc.. Concordo com você! De fato, toda a humanidade é produto da mistura. Existe mistura racial aqui, na Alemanha, nos States, na China, no Egito, enfim, não existe grupo humano na face da terra que não tenha passado por trocas biológicas com outros grupos. Isso fez parte da formação da humanidade, por isso estamos aqui! Talvez a grande diferença no interior da humanidade seja a forma como os grupos significam essa “miscigenação”. Cada nação ou grupo social produziu interpretações sobre essas trocas biológicas. No Brasil, a “mistura racial” foi transformado em símbolo nacional. Diferente dos States, que, só pra mostrar uma história parecida-mas-diferente, preferiram significar a miscigenação como aspecto negativo pra legitimar políticas do tipo “juntos, mas separados [e desiguais]”. Mas se você notar bem, no States também há bastante miscigenação, não? Acontece que no Brasil, essa história de sociedade mestiça só serve como cortina de fumaça pra extrema desigualdade racial que existe aqui e pra supremacia branca ficar de boa. Os brancos são os mais ricos, os pretos os mais pobres, mas somos todos mestiços; os pretos morrem mais de assassinato pela política do que os brancos, mas, somos todos mestiços; os brancos moram nos lugares mais limpinhos e legais das cidade, os pretos nos lugares mais insalubres e violentos, mas, somos todos mestiços; brancos estão em massa nos melhores postos de trabalho, nas melhores universidades, nas posições de poder (na política), pretos, nas cadeias, nos necrotérios, no trabalho informal, mas, ainda somos mestiços, né?! Enfim, essa história de que somos todos mestiços já não cola. Sabemos muito bem quem é quem no “mundo que o português criou”. Acho que você já notou, mas é bom lembrar, essa coisa de miscigenação é só pra manter a sua consciência limpa sobre a hecatombe racial que vivemos aqui. Contudo, eu sei, você sabe; o sangue escorre pelas suas mãos. Assim, cara pálida, cota pra preto, é pra preto!

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Cassi Jones de Azevedo
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Written by Cassi Jones de Azevedo

pelo apuro forçado e o degagé suburbanos.

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